quinta-feira, maio 02, 2013

O caminho suicidário do Presidente da República

• Francisco Assis, O caminho suicidário do Presidente da República [hoje no Público]:
    ‘1.Quando um político decide dedicar-se ao singular exercício da interpretação de si próprio, é sinal de que algo correu mal na declaração anterior. Quando esse político é o próprio Presidente da República e a declaração em causa corresponde ao discurso proferido perante o Parlamento na sessão solene do 25 de Abril, a coisa assume proporções especialmente relevantes. Aníbal Cavaco Silva cometeu um erro crasso naquela manhã - identificou-se superlativamente com a figura do primeiro-ministro, ao ponto de se parecer mais com Pedro Passos Coelho do que o próprio. Alguém o deveria ter advertido para os riscos do culto da heteronomia. Há muito que sabemos que este prazer está vedado aos políticos.

    Lembremos essa infausta manhã presidencial. Depois de ter ouvido um brilhante discurso de Alberto Costa, e uma interessante reflexão filosófica de Assunção Esteves, o locatário de Belém optou pela mais inesperada das vias, a da colagem quase acrítica ao executivo. As reacções desmentem qualquer ambiguidade: a direita, eufórica, aplaudiu de pé; a esquerda, estupefacta, permaneceu silenciosa e sentada. A hipocrisia ausentou-se do hemiciclo naquele instante, uns e outros exprimiram genuinamente o que sentiam. Cavaco tinha acabado de retroceder no tempo e de se autolimitar no espaço, abdicando incompreensivelmente de uma maior latitude de intervenção política. Comportamento estranho num homem que tinha todas as condições para se elevar acima das contingências da política quotidiana. É verdade que o Presidente já tinha uma mancha no seu percurso - o discurso da sua segunda tomada de posse¹. Só que então havia a explicação do ressentimento, na sequência de uma campanha em que tinha sido questionada a sua integridade pessoal. Se já então a dimensão passional parecia sobrelevar toda e qualquer outra preocupação, subsistia ainda uma razão conjecturável. Agora, contudo, já não se consegue antever facilmente um motivo razoável para que o Presidente da República enverede por tão suicidário caminho. Esperemos que este comportamento não seja o resultado de uma reacção instintiva ao regresso de José Sócrates ao espaço mediático nacional. Seria muito mau se assim fosse. A última coisa de que precisamos é de um Presidente da República incapaz de superar uma tentação de tipo pavloviano.

    Ao mesmo tempo que o país assistia a este discurso, o executivo dava sinais de adesão à paixão pela heteronomia. Provavelmente cansado de ser apenas ele próprio, o primeiro-ministro desdobra-se agora nas figuras de Vítor Gaspar e Poiares Maduro, com nítido prejuízo para esse grande mestre da heterodoxia enquanto propaganda chamado Paulo Portas. De um momento para o outro o Governo passou a proclamar as virtudes do consenso e a apelar à participação do principal partido da oposição na busca de entendimentos que postula de imprescindíveis. Há, porém, qualquer coisa de pouco fiável neste discurso. A realidade teima em desmenti-lo. Ouvimos Miguel Maduro e ficamos com a sensação de que ele não passa de uma espécie de superstrutura de um executivo que continua a ter em Vítor Gaspar a infra-estrutura determinante, para utilizarmos de uma forma simplista e metafórica algumas categorias elementares do pensamento marxista. Maduro entoará hinos a uma Europa onírica que alguma esquerda aprecia, Gaspar imporá as receitas que a liderança germânica preconiza. Maduro apregoará, Gaspar decidirá. Maduro desempenhará na perfeição a tarefa de um magistral relações-públicas, Gaspar continuará a mandar no Governo. Do ponto de vista da imagem política, a solução não é má: ambos são brilhantes, inquestionavelmente inteligentes, situando-se muito acima da média da sofrível vida política portuguesa. Do ponto de vista da ética, já é muito mais questionável. No plano dos resultados os efeitos antevêem-se catastróficos.’

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¹ Em rigor, Cavaco não tem “uma mancha no seu percurso”. O seu percurso é todo ele uma mancha. Não é possível esquecer tudo o que Cavaco fez contra os Governos de Sócrates, designadamente a inventona das escutas, que configura uma tentativa de golpe de Estado.

1 comentário :

josé neves disse...

O Assis também me parece um bom maduro. Reparem neste indicador: "Só que então havia a explicação do ressentimento, na sequencia de uma campanha em que tinha sido questionada a sua integridade pessoal".
Assis, maduro, a desculpar o ressentimento de Cavaco pela campanha contra a integridade do mesmo. O maduro Assis não questiona a integridade de Cavaco questiona a integridade da campanha.
Ó Assis, Assis, é por isso que se nota cada vez mais os zique-zaques do caminho que anadas a percorrer.